A Santa Sé Além do Pontífice no Direito Internacional
Enquanto ator internacional, a Santa Sé tem atuação relevante na resolução de conflitos
A recente morte do Papa Francisco em 21 de abril de 2025 deixou a Santa Sé em um período de sede vacante,simbolizado pelo emblema do Vaticano, o guarda-chuva amarelo e vermelho, de um trono vazio. No entanto, mesmo com o papado vago, a Santa Sé continua sendo um sujeito ativo do direito internacional e da diplomacia, sendo guiado pelas suas leis canônicas. Internacionalmente, a Santa Sé é única entre os atores globais, simultaneamente a liderança espiritual de mais de um bilhão de católicos e uma entidade legal soberana reconhecida no Direito Internacional.
Esse caráter duplo há muito lhe permite desempenhar um papel distinto na justiça internacional — um papel que continua mesmo sem um Papa reinante. Ao longo de décadas, a Santa Sé aproveitou seu status especial para se envolver com tribunais internacionais, arbitrar conflitos e defender a paz com justiça. Esse envolviment, contudo, revela um equilíbrio cuidadoso: às vezes, um participante silencioso registrando notas jurídicas confidenciais, outras vezes, uma voz moral defendendo a responsabilização no cenário mundial.
Nesta análise, exploramos como a Santa Sé contribuiu para a justiça internacional, desde os tribunais de Haia até os processos de paz pós-conflito, e com que transparência o fez.
A Santa Sé no Direito Internacional - um ator discreto mas firme em posições
Um Soberano sem Estado? A Santa Sé ocupa um nicho de "soberano não estatal" no direito internacional. Não é membro das Nações Unidas, mas é um Estado Observador Permanente na ONU e é amplamente tratado como detentor dos atributos de uma entidade soberana. Goza de direitos como a celebração de tratados e relações diplomáticas, enraizados em sua missão religiosa e moral singular. A própria CIJ reconheceu, em um parecer consultivo de 1949 (Reparação de Danos), que a personalidade internacional depende das necessidades da comunidade internacional, e não dos critérios tradicionais de Estado. Os Estados, portanto, aceitaram a Santa Sé como uma soberana sui generis, permitindo-lhe integrar organizações como a AIEA e a OSCE e assinar tratados multilaterais.
Sem Participação nos Procedimentos da CIJ: Apesar desse reconhecimento, a Santa Sé não participou de nenhum procedimento formal perante a Corte Internacional de Justiça. Não é parte do Estatuto da CIJ e não apresentou declarações escritas ou orais em casos consultivos ou contenciosos. Embora apoie o mandato da CIJ e frequentemente se manifeste a favor da solução pacífica de controvérsias em fóruns da ONU, como o Sexto Comitê, a Santa Sé mantém uma posição de princípio de não envolvimento nos processos judiciais da Corte.
Essa ausência de participação direta reflete a postura diplomática cautelosa da Santa Sé. Em vez de apresentar memoriais jurídicos ou buscar influenciar resultados judiciais, a Santa Sé tende a promover seus pontos de vista por meio de um discurso diplomático mais amplo, enfatizando valores fundamentais como a dignidade humana, o direito humanitário e a responsabilidade moral. Esse modo de engajamento está alinhado ao seu papel mais amplo como autoridade espiritual neutra e ator moral global.
Arcebispo Gallagher em uma conferência sobre desarmamento na ONU - Fonte: Vatican News
Publicidade de suas posições. Apesar de não engajar com a Corte diretamente, a Santa Sé acolhe a sua autoridade na resolução de disputas e ocasionalmente sinalizou apoio a encaminhamentos à CIJ em fóruns diplomáticos. Por exemplo, diplomatas do Vaticano no Sexto Comitê da ONU exaltaram o papel da CIJ na resolução pacífica de disputas. No entanto, quando a Santa Sé deseja tornar suas opiniões jurídicas conhecidas em assuntos da CIJ, frequentemente o faz por meio de declarações escritas ou notas diplomáticas, em vez de litígios de alto perfil.
Esses documentos, normalmente submetidos confidencialmente ou com pouca publicidade, permitem que a Santa Sé expresse sua posição sobre questões jurídicas internacionais sem se envolver demais em procedimentos adversariais. A confidencialidade é uma marca registrada: a Santa Sé tende a manifestar suas posições jurídicas com um tom reservado, evitando disputas judiciais e preferindo o diálogo diplomático e as concordatas. Historicamente, quando disputas legais envolvendo o Vaticano surgiram, elas foram resolvidas por tratado (por exemplo, os Pactos de Latrão de 1929 com a Itália) ou arbitragem.
As contribuições da Santa Sé em Direito Internacional, portanto, assumem um caráter muito mais diplomático do que contencioso - são focadas em discussões em fóruns internacionais, ou mesmo manifestações próprias focando em princípios fundamentais (e não focados em sua soberania e interesses nacionais).
Princípios: A Santa Sé e a Justiça Penal Internacional
Justamente baseada nesses valores fundamentais obviamente ancorados em uma moral cristã, a Santa Sé tem forte atuação diplomática em assuntos que envolvem conflitos armados. Além de manifestações a respeito das atrocidades e da necessidade de evitá-las ou remediá-las, a Santa Sé também teve importante papel em estabelecer tribunais internacionais criminais. Nos últimos 30 anos – um período que viu o surgimento de tribunais ad hoc para crimes de guerra e do Tribunal Penal Internacional (TPI) – a Santa Sé emergiu como uma defensora ferrenha da responsabilização dos autores de crimes atrozes, ainda que em seus próprios termos.
De Tribunais a um Tribunal Permanente: Na década de 1990, enquanto o mundo respondia às atrocidades nos Bálcãs e em Ruanda, a Santa Sé acolheu com satisfação os esforços para estabelecer tribunais penais internacionais. O Papa João Paulo II condenou a limpeza étnica na ex-Iugoslávia e o genocídio em Ruanda como "pecados que clamam aos céus" e indicou que tais crimes seriam “crimes contra a humanidade”. Representantes do Vaticano na ONU elogiaram a criação do TPIJ e do TPIR pelo Conselho de Segurança, considerando a responsabilização como um componente do processo de reconciliação nessas sociedades devastadas pela guerra (mesmo que autoridades da Igreja no terreno também enfatizassem o perdão).
Essa defesa culminou no forte apoio da Santa Sé a um tribunal penal internacional permanente. Na Conferência Diplomática da ONU de 1998, em Roma, que elaborou o estatuto do TPI, a delegação da Santa Sé desempenhou um papel ativo e altamente visível. "A Santa Sé pediu um Tribunal Penal Internacional que proteja a dignidade do ser humano e a instituição da família", declarou o representante do Vaticano em Roma, observando a esperança do Papa João Paulo II de que a conferência fosse "histórica". Quando o Estatuto de Roma foi adotado, a Santa Sé "acolheu o resultado da Conferência" , saudando-a como um "passo histórico à frente" em direção a um sistema de justiça que afirma a dignidade humana, protegendo a “dignidade do ser humano e a instituição da família”.
A linguagem do preâmbulo fundador do TPI ressoou com as prioridades do Vaticano - de fato, a Santa Sé ficou satisfeita que o preâmbulo do Estatuto explicitamente lembra que "milhões de crianças, mulheres e homens" sofreram atrocidades que "chocam profundamente a consciência da humanidade" e afirma que tais crimes graves "não devem ficar impunes".
No entanto, a retórica entusiástica da Santa Sé em 1998 foi acompanhada de algumas reservas de princípios. Em Roma, lutou arduamente por disposições específicas para garantir que se alinhassem com suas doutrinas morais. Mais proeminentemente, a Santa Sé liderou uma coalizão (apoiada pela Liga de Estados Árabes) para se opor à inclusão de perseguição motivada por gênero, assim como de "gravidez forçada" como um crime explícito contra a humanidade, por preocupação de que esse termo fosse indefinido e pudesse ser mal utilizado para implicar um direito ao aborto (veja nota contemporânea da Human Rights Watch).
A delegação do Vaticano preferiu o termo " impregnação forçada ", argumentando que o crime deveria punir a gravidez forçada de uma mulher (como uma ferramenta de limpeza étnica, vista na Bósnia) sem implicar nada sobre a interrupção dessa gravidez. Essa postura refletia o desejo da Santa Sé de criminalizar ultrajes contra mulheres e proteger a vida em gestação – um delicado equilíbrio entre justiça e doutrina católica. No final, a maioria prevaleceu e a "gravidez forçada" foi incluída na lista de crimes do Estatuto de Roma. O termo foi adotado com uma definição mais clara para dissipar preocupações (especificando que "não deve, de forma alguma, ser interpretado como afetando as leis nacionais relativas à gravidez" ).
Papa Francisco em 2017 com a então presidente do TPI, Juíza Silvia Fernández de Gurmendi (esq.) e Felipe Michelini (dir.), membro do Conselho do Fundo Fiduciário para Vítimas (TFV) do TPI - Fonte: ICC
A Santa Sé também expressou preocupações sobre as disposições do Estatuto sobre a família e sobre o papel do Conselho de Segurança da ONU, mas acabou aderindo ao consenso. Não se tornou parte do Estatuto de Roma — provavelmente para manter seu status neutro e talvez devido a reservas morais persistentes —, mas assinou a Ata Final da Conferência de Roma e permaneceu envolvida com o desenvolvimento do TPI.
Engajamento com o TPI e os Tribunais: Nos anos seguintes, a Santa Sé se posicionou como um observador solidário do TPI. Ela afirmou repetidamente o valor do Tribunal para acabar com a impunidade. Por exemplo, o Papa Francisco – que como cardeal elogiou o mandato do TPI – recebeu líderes do TPI no Vaticano para discutir cooperação. Em uma audiência marcante em 2020, o Papa Francisco se encontrou com o Presidente do TPI (à época, Juiz Chile Eboe-Osuji) e o Ministro das Relações Exteriores da Santa Sé para ressaltar objetivos compartilhados - o Presidente do TPI observou “o papel tradicional da Santa Sé em… disseminar a mensagem de paz” e enfatizou a “união de propósito entre a Santa Sé e o TPI” na busca pela paz por meio da justiça.
Em termos práticos, diplomatas do Vaticano emprestaram sua voz a iniciativas pró-TPI na ONU — por exemplo, encorajando os estados a ratificarem o Estatuto de Roma e a não minar a confiança internacional no Tribunal. Da mesma maneira, o Vaticano está sendo um ator importante pela assinatura de um tratado que lide com crimes contra humanidade e permita aos Estados cooperarem mais intensamente nesse tema - o Observador Permanente da Santa Sé para a ONU, Arcebispo Gabriele Caccia, destacou em 2024, haver a “necessidade de um ‘instrumento universal, multilateral e juridicamente vinculativo, que codifique o direito consuetudinário existente nesta área’, o que, segundo ele, promoveria a cooperação internacional na prevenção e punição desses "atos hediondos” (fonte).
Controvérsias e casos contra a Santa Sé. Dito isto, o envolvimento da Santa Sé em procedimentos reais do tribunal tem sido circunspecto. Ela não apresentou memoriais de amicus curiae em casos do TPI ou em tribunais ad hoc. Um dos motivos é que a Santa Sé, como soberana, geralmente prefere vias diplomáticas a litígios para impor suas opiniões, como visto acima. Outro motivo é que, diferentemente de Estados ou ONGs, ela não tem nenhum caso direto perante esses tribunais para argumentar. No entanto, em algumas ocasiões notáveis, a Santa Sé foi envolvida em processos de justiça criminal internacional como parte interessada ou até mesmo como alvo. Em 2011, um grupo de direitos humanos apresentou uma queixa ao TPI acusando autoridades do Vaticano de crimes contra a humanidade em relação a acobertamentos de abusos sexuais do clero. A Santa Sé não era membro do TPI e a queixa foi finalmente rejeitada por questões jurisdicionais. O episódio, no entanto, reforçou um ponto legal, ainda que na teoria: um Papa ou prelado do Vaticano poderia ser julgado pelo TPI como um indivíduo (se o crime estivesse sob a jurisdição do TP), trazendo a tona também a questão de imunidades jurisdicionais que os Estados tem.
Essas defesas legais mostram o outro lado do apoio da Santa Sé à justiça: ela endossa a responsabilização de indivíduos, mas resiste a qualquer tentativa de perfurar o véu de sua condição de estado ou submeter a própria Igreja à supervisão judicial em tribunais estrangeiros.
Discrição, Transparência e Continuidade
Comparando essas arenas – a CIJ e o domínio da justiça criminal internacional – surge uma questão: Quão abertamente a Santa Sé apresenta suas posições? A resposta varia. Na CIJ e na esfera do direito internacional clássico, a Santa Sé tende à diplomacia silenciosa e à transparência limitada. Suas visões jurídicas podem estar escondidas em correspondências confidenciais ou em documentos de baixo perfil. Da mesma forma, quando a Santa Sé participa de debates jurídicos da ONU (por exemplo, sobre o direito do mar ou imunidades estatais), frequentemente o faz por meio de intervenções concisas de observadores que recebem pouca cobertura da mídia. Essa discrição é em parte intencional – a Santa Sé frequentemente se vê como uma mediadora trabalhando nos bastidores e, portanto, não transmite todos os argumentos jurídicos no cenário mundial.
Reflete também o que a Santa Sé pode fazer com os recursos que lhe é dado para atuar nessa área: a missão da Santa Sé, com uma equipe jurídica reduzida, intervém seletivamente e de forma sumária, em vez de litigar longamente. O resultado é que as contribuições da Santa Sé em processos jurídicos interestatais podem ser opacas para pessoas de fora. Pesquisadores frequentemente precisam vasculhar arquivos da ONU para descobrir, por exemplo, a opinião jurídica da Santa Sé sobre uma determinada questão (como sua posição diferenciada sobre a definição de agressão ou seu endosso sutil a certos mecanismos de arbitragem).
Em contraste, no campo da justiça criminal internacional, a postura da Santa Sé tem sido relativamente transparente e pública . Durante a Conferência de Roma e as subsequentes Conferências de Revisão do TPI, as posições da Santa Sé (mesmo as controversas, como sobre a gravidez forçada ) foram abertamente divulgadas e relatadas em fontes da imprensa. A mídia do Vaticano e os meios de comunicação católicos cobriram as campanhas da Santa Sé por justiça, como sua pressão por um tratado de Crimes Contra a Humanidade.
Papas e diplomatas da Santa Sé frequentemente falam sobre responsabilização em seus discursos, que são publicados no site do Vaticano e na Acta Apostolicae Sedis oficial . Por exemplo, os discursos do Papa Francisco na Colômbia sobre "verdade, justiça e misericórdia" na construção da paz foram amplamente divulgados, enviando uma mensagem clara das expectativas da Santa Sé em relação à justiça pós-conflito. Da mesma forma, a Santa Sé acolhe abertamente funcionários do TPI em reuniões amplamente divulgadas e emite comunicados à imprensa afirmando a importância do Tribunal.
No tribunal da opinião pública, o Vaticano não esconde que apoia os esforços para processar genocídios, crimes contra a humanidade e crimes de guerra – desde que esses esforços respeitem a dignidade humana fundamental (incluindo, nomeadamente, os direitos do nascituro e o papel da família) e, obviamente, a moral cristã. Vale ressaltar que, mesmo quando a Santa Sé é transparente sobre o que apoia, ela se mantém cautelosa sobre como se envolve, já que sua influência reside na persuasão e no exemplo. Assim, em vez de nomear e envergonhar diretamente em fóruns jurídicos, a Santa Sé frequentemente expressa suas posições na linguagem de princípios compartilhados. Esse estilo às vezes obscurece os detalhes jurídicos, mas transmite os valores em jogo.
Há, portanto, uma certa dualidade na transparência da Santa Sé. Ao atuar como um quase-Estado em processos jurídicos interestatais, ela frequentemente opera com a reserva diplomática tradicional, revelando sua posição apenas em ambientes fechados ou por meio de documentos oficiais, porém discretos. Seus argumentos jurídicos nesses contextos podem se tornar parcialmente visíveis décadas depois, quando arquivos são abertos ou comentários acadêmicos aparecem. Por outro lado, quando a Santa Sé se inclina para seu papel de autoridade moral em questões de justiça (genocídio, violência em massa, direitos humanos), ela se manifesta claramente e para que fique registrado. O público, neste último caso, não são apenas juízes ou diplomatas, mas a humanidade em geral – portanto, o Vaticano não se esquiva da transparência quando as questões se alinham com sua missão moral e institucional, mas é mais cautelosa quando as questões esbarram nos seus interesses ou podem afetar seus próprios privilégios.
Arcebispo Gabriele Caccia, Observador Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas - Fonte: Vatican News
Considerações Finais: Um Ator Estável no Direito Internacional
Mesmo durante o período de sede vacante, a Santa Sé permanece um ator relevante no cenário jurídico internacional. Sua personalidade jurídica, reconhecida independentemente da figura do Papa, assegura a continuidade de sua atuação diplomática, jurídica e moral. Os princípios que orientam sua participação — a dignidade da pessoa humana, a justiça como fundamento da paz, e a necessidade de mecanismos internacionais eficazes para resolver disputas e punir crimes graves — permanecem inalterados.
A Secretaria de Estado, os dicastérios competentes e as missões permanentes da Santa Sé junto a organizações internacionais continuam a exercer suas funções normalmente, preservando a coerência da atuação internacional da instituição. A morte do Papa Francisco marca um momento de transição, mas não de ruptura. A Santa Sé continuará a contribuir com o desenvolvimento do direito internacional, promovendo uma ordem jurídica fundada em princípios éticos cristãos e na busca por soluções pacíficas e justas para os desafios globais.
Ao reafirmar seu compromisso com o direito internacional, inclusive na ausência temporária de um pontífice, a Santa Sé demonstra que sua atuação como sujeito jurídico internacional não depende apenas da liderança papal, mas também de uma tradição institucional consolidada, capaz de oferecer uma contribuição estável, ponderada e moralmente fundamentada ao sistema internacional. Como um Estado, mas sem ser um.
Leia mais:
HASTREITER, Michele Alessandra; WERLANG, Beatriz Gomes de Sá.
A Relevância da Santa Sé como Sujeito de Direito Internacional (Link)
RAGIL, Rodrigo Rochas Feres. A Posição da Santa Sé no Direito Internacional (Link)
RYNGAERT, Cedric. The Legal Status of the Holy See (Link)